Mundo em transformação: as mudanças que nos colocaram nos dilemas atuais

Primeiro painel do segundo dia da IV Conferência Dilemas da Humanidade contou com apresentações de Vijay Prashad; Jeffrey Sachs; Mandla Radebe e Magdalena Leon, com moderação de Leda Paulani. Foto: Priscila Ramos
Segundo dia da IV Conferência Dilemas da Humanidade traz as raízes das crises do capitalismo e do neoliberalismo
Neste primeiro painel da IV Conferência Dilemas da Humanidade, que está sendo realizado até a próxima quinta-feira (10), o evento foi marcado pelo debate sobre a ideia global de que vivemos um período de transformação estrutural, que decorre de crises no sistema capitalista e nas relações internacionais. Neste contexto, surgem desafios globais urgentes que incluem conflitos armados, insegurança alimentar, disparidades socioeconômicas e mudanças ambientais extremas.
A superação desses problemas requer estratégias de cooperação internacional e esforços coordenados entre nações e organizações multilaterais. Por isso, as respostas a essas questões definirão os rumos do desenvolvimento global nas próximas décadas. O primeiro painel contou com a moderação da economista e professora titular da FEA-USP, Leda Paulani, que atua em economia política e desenvolvimento. Paulani trouxe alguns pontos para a discussão dos desafios contemporâneos relacionados a crises socioeconômicas, capitalismo, finanças e políticas públicas.
Rumos da América Latina
O primeiro painelista a se apresentar foi Jeffrey Sachs, economista e professor da Universidade Columbia, que enviou um vídeo com considerações para o debate. Sachs é especializado em desenvolvimento sustentável e política econômica e começou destacando o momento atual e sua importância para a economia mundial, que implica tanto em uma nova geopolítica quanto em uma economia "multipolar".
"A China é uma das principais impulsionadoras da economia global, uma grande inovadora na vanguarda das tecnologias mais avançadas. A Índia continua seu rápido crescimento econômico (...), e a África, a região mais pobre do mundo, está prestes a iniciar décadas de rápido crescimento econômico e populacional, o que significa que terá um papel muito maior na economia mundial nas próximas décadas", afirmou Sachs, completando com uma análise da América Latina. "A América Latina vive um paradoxo: é uma região de talentos extraordinários e recursos abundantes, mas segue presa na armadilha da renda média, sem ousar dar o salto tecnológico e produtivo que seu povo merece."
Sobre a Europa, Sachs afirma que há incerteza sobre sua capacidade de reorganização devido ao cenário atual de confusão, agravado pelo protecionismo dos EUA, enquanto a Rússia é apontada como uma futura grande potência econômica global. Entretanto, para a América Latina "permanece estagnada na condição de renda média, dependente da exportação de commodities e produtos manufaturados". Sachs destaca, ainda, a falta de avanços significativos em tecnologia, infraestrutura, qualificação da mão de obra e investimentos em pesquisa e desenvolvimento, fatores essenciais para uma transformação econômica mais dinâmica, como a desejada para o Brasil e toda a região.
"Precisamos de taxas de investimento mais altas, o que significa, em parte, governos não limitados por medidas tradicionais de dívida e finanças. Se separarmos orçamento de capital do orçamento corrente, podemos ter desembolsos de capital muito maiores em P&D [Pesquisa e Desenvolvimento], infraestrutura física, capital natural e construção da bioeconomia - garantindo que os biocombustíveis brasileiros se tornem os combustíveis de aviação do futuro em nosso mundo de carbono zero."
Sachs concluiu trazendo a integração regional também como componente importante para a América Latina e Caribe, algo que ele ainda considera insuficiente. "A região precisa se unir e se integrar em infraestrutura, políticas, finanças e geopolítica - para negociar acordos comerciais ou evitar que potências ameacem a soberania dos países da região. Vocês entendem minha perspectiva."
A economia feminista
Magdalena León, economista equatoriana e pesquisadora especializada em economia feminista e desenvolvimento alternativo, trouxe em sua fala a discussão dos dilemas da humanidade a partir de um olhar sobre desigualdades estruturais, sustentabilidade e economias comunitárias, com alusões a "tempos históricos" ou "fim da humanidade como a conhecemos".
“Trago aqui, a partir das economias feministas e alternativas, reflexões para uma agenda do presente e do futuro. As transformações surgem de uma síntese entre teoria e realidade. Vivemos tempos acelerados, mas também de longas lutas, com o desafio de encontrar alternativas que nascem das resistências, das críticas e, sobretudo, das realidades concretas”.
León apresenta a economia feminista e seus aspectos fundamentais de reinterpretação da realidade econômica, entendendo-a não apenas como um sistema de produção e troca, mas como um conjunto amplo de relações sociais, modos de vida e valores tanto econômicos quanto sociais. Isso implica uma visão integral da economia que nos ajude a olhar para trás e reconhecer o poder transformador de práticas já existentes, como as economias camponesas, populares e do cuidado, segundo León.
“É urgente falar de uma economia para a vida, não apenas porque o capital está destruindo-a, mas porque precisamos enfrentar o inadiável: a imposição de um mercado total. Precisamos entender os mecanismos que mercantilizam a vida – não só como negócio sobre necessidades básicas, mas como uma reconfiguração das relações sociais, onde a lógica do mercado domina até os vínculos humanos.”
Ela finalizou a fala abordando o avanço da ultradireita como herança do neoliberalismo, que consolidou a dominação do mercado, o saque de recursos naturais e a formação de subjetividades alienadas. Ela criticou a narrativa que chama de “simplista” – que culpa apenas os governos progressistas –, defendendo em vez disso uma reorganização do trabalho e a retomada da planificação com visão integral.
“A humanidade se constitui de relações de vida e de trabalho. Precisamos reinterpretar o presente e o passado. A ética do cuidado e da solidariedade é o que nos permitiu chegar até aqui. Hoje, a economia opera numa lógica de guerra – destrutiva e terminal. Mas há experiências alternativas, mesmo que pequenas, que podem iluminar o futuro.”
A divisão do trabalho e da humanidade
Quando os movimentos progressistas assumem o poder, deparam-se com um dilema histórico: como implementar mudanças profundas dentro de estruturas herdadas do neoliberalismo? A experiência recente demonstra que não basta ter vontade política – é necessário um novo marco teórico e instrumental para o desenvolvimento no século XXI, de acordo com Vijay Prashad. O historiador, escritor e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social finalizou o painel com uma reflexão sobre imperialismo, descolonização e alternativas ao capitalismo neoliberal.
"Como marxistas, revisitamos o capítulo 32 de O Capital, que aborda a socialização do trabalho – conceito central distinto da 'divisão do trabalho'. Enquanto esta última se limita à organização fabril, a socialização opera em escala global: exige mercado mundial, integração de insumos diversos e agregação de recursos e habilidades em uma 'linha de montagem' planetária, rumo à libertação humana."
Prashad destaca uma pesquisa do Instituto Tricontinental, que estrutura a socialização do trabalho em cinco pilares fundamentais e mensuráveis: capital circulante (bens intermediários), capital fixo (formação capitalista), mercado mundial, trabalhadores qualificados e P&D. Esses elementos revelam como o capitalismo contemporâneo organiza a produção em escala global, oferecendo insights para governos progressistas que buscam alternativas ao modelo neoliberal. A análise desses pilares não apenas desvenda a complexidade da economia globalizada, mas também aponta para as contradições que podem ser aproveitadas na construção de projetos emancipatórios, especialmente num contexto em que as forças produtivas avançam muito mais rapidamente que as relações sociais de produção.
Atualmente, segundo Prashad, os governos progressistas enfrentam armadilhas imediatas. "Ao buscar financiamento, recorrem ao FMI, que não oferece capital para desenvolvimento – apenas impõe ajustes para satisfazer credores[...]. Economistas do FMI repetem fórmulas falidas, como atrair IED, mas dados do World Investment Report mostram que o IED migrou da indústria para serviços", enquanto a formação líquida de capital fixo mostra maior correlação com a taxa de crescimento.
Ele também salienta que a pesquisa evidencia que o processo eleitoral hoje se opõe ao processo de desenvolvimento. "Estamos descobrindo, curiosamente, que os ciclos eleitorais vão contra as necessidades de desenvolvimento. Eles pressionam os governos a priorizar gastos imediatos, quando o que transforma economias são investimentos de longo prazo."
Por fim, Prashad reforça a relevância do regionalismo, enfatizando a notável, porém problemática, baixa integração do Brasil com seus vizinhos na América do Sul, e ressalta que as estruturas da administração pública representam tanto obstáculos quanto oportunidades para políticas transformadoras. "A cultura da sociedade precisa mudar. As pessoas não aprendem eficiência administrativa, gestão documental ou atendimento público. Não cultivamos valores como competência técnica e respeito ao cidadão."
Não existe capitalismo sem racismo
Mandla Radebe, ativista e analista político sul-africano, traçou um paralelo entre as estruturas do apartheid e as dinâmicas políticas contemporâneas. Ele demonstrou como os resquícios do Apartheid, do colonialismo e do imperialismo ainda moldam as dinâmicas políticas e argumentou que, para compreender fenômenos como o governo Trump, é necessário revisitar o legado do Apartheid e analisar como o racismo estrutural foi institucionalizado ao longo da história.
A partir desta perspectiva sul-africana, Radebe explicou como racismo, xenofobia, homofobia e etnonacionalismo persistem, ilustrando com um exemplo recente: "Um candidato se apresentou com a proposta de cortar o oxigênio em hospitais que atendem migrantes zimbabuanos. O crescimento da extrema direita coincide com o aumento da xenofobia – ativistas invadem hospitais para perseguir trabalhadores migrantes."
Nesse contexto, Radebe analisou a África do Sul pós-Apartheid, criticando o que chamou de "incapacidade do ANC em promover integração efetiva, optando por criar uma pequena burguesia negra corporativa em vez de transformações econômicas estruturais." Para resolver a questão nacional, ele defendeu a necessidade de confrontar as mutações do capitalismo, já que opressão racial e de classe permanecem entrelaçadas.
"Nossa política ainda é marcada por divisões etnolinguísticas e etnonacionalismo crescente. Sofremos dupla opressão: racial e de classe. Enquanto políticos usam trabalhadores negros como bodes expiatórios, ex-empresários no poder culpam migrantes pelos fracassos do sistema. Projetos de 'renovação urbana' expulsam os pobres dos centros econômicos. Racismo e questão nacional são inseparáveis da exploração capitalista – o povo negro foi oprimido como raça e como classe."
Sobre a relação entre racismo e capitalismo, Radebe foi enfático: "Estão intrinsecamente ligados. O racismo não é isolado, mas produto da exploração sistêmica do capitalismo, fundamental no colonialismo e na escravidão. [...] A África do Sul seguirá como bastião da solidariedade internacional, confrontando Israel e outros, porque essa solidariedade sempre foi nossa autodefesa – nossa libertação foi conquistada com ela."