O Sul Global pode escapar do sistema financeiro dominado pelos EUA?

Panel Dilemmas of Humanity

Russian economist Yaroslav Lissovolik speaks on the panel discussion "New Financial Architecture" at the IV Dilemmas of Humanity Conference. Photo: Priscila Ramos

Na IV Conferência Dilemas da Humanidade, economistas da Rússia, China e Brasil discutiram diferentes propostas para a criação de uma nova arquitetura financeira que ajude as nações a se libertarem do sistema dominado pelos Estados Unidos.

É possível criar sistemas de comércio, finanças e financiamento fora da influência dos EUA? O bloco dos BRICS é capaz de construir alternativas que desafiem esse sistema? Essas foram duas das questões centrais enfrentadas pelas nações do Sul Global debatidas por economistas, acadêmicos e líderes políticos durante a IV Conferência Internacional Dilemas da Humanidade, em São Paulo. Essas nações enfrentam obstáculos para implementar planos de redução da pobreza, alcançar soberania econômica e fortalecer o comércio com seus vizinhos, tudo por conta das restrições impostas pelos Estados Unidos e pela dependência de reservas em dólar para saldar suas dívidas.

O painel “Nova Arquitetura Financeira” realizado em 10 de abril, contou com Yaroslav Lisovolik, economista russo e diretor executivo sênior do Sberbank Investment Research; Paulo Nogueira Batista Jr., economista brasileiro, ex-diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS; e o professor chinês Gong Gang, da Universidade de Finanças e Economia de Yunnan. A mediação foi feita pelo economista indiano Subin Dennis, da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Délhi, e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Plataformas regionais

Para o economista russo Yaroslav Lisovolik, a crise que atinge as economias globais, especialmente as do Sul Global, é sem precedentes. Segundo ele, essas crises se tornaram mais frequentes e o sistema atual é incapaz de lidar com os grandes desafios – como a crise energética, a transição para a sustentabilidade e, especialmente, o endividamento.

Ao mesmo tempo, “os países que pregaram a liberalização (como os Estados Unidos) hoje são os principais promotores do protecionismo em investimentos, deixando de lado os paradigmas de eficiência econômica e oportunidade para priorizar conceitos como 'friendshoring', 'reshoring' e outros que fogem totalmente dos manuais econômicos”, apontou.

Nesse contexto, é preciso considerar novas soluções e fortalecer as estruturas alternativas já existentes. Lisovolik, em consonância com outros participantes da conferência, defendeu o regionalismo como um mecanismo importante para criar blocos financeiros e comerciais regionais. Isso permitiria “reunir os recursos do Sul Global em nível regional e, por meio dessa agregação, criar plataformas com maior peso e impacto” no sistema econômico global. Ele argumentou que um componente essencial de uma nova arquitetura econômica global seria a criação de uma camada de governança regional nas áreas de comércio, finanças e investimentos.

Nesse sentido, ele propôs fortalecer, ampliar e construir:

1. Acordos comerciais regionais

— Exemplos existentes incluem o MERCOSUL, a ASEAN e a União Europeia;
— A articulação entre esses acordos regionais e instituições globais daria mais poder de barganha aos países do Sul Global, já que “o poder coletivo desses blocos regionais é muito maior do que o das instituições globais enfraquecidas como a OMC”.

2. Acordos de financiamento regionais

— As versões regionais do FMI têm maior conhecimento sobre as especificidades locais e dados mais precisos sobre as economias regionais. Seus recursos coletivos já superam os do FMI.

3. Projetos regionais de investimento

— Criar alternativas ao Banco Mundial por meio da construção de plataformas para bancos regionais de desenvolvimento. Uma plataforma unificada poderia contar com mais recursos que o próprio Banco Mundial e teria mais proximidade com os contextos e necessidades dos países.

Lisovolik apontou que o núcleo central para articular essas formações regionais seria o BRICS+, que deve dar passos mais decisivos em sua expansão e na construção de instituições sólidas. O objetivo dessa camada regional seria inverter a “causação cumulativa” — ou seja, evitar que regiões já desenvolvidas continuem se beneficiando desproporcionalmente, enquanto as mais desfavorecidas ficam para trás.

“Pela primeira vez, o Sul Global tem uma oportunidade única de dar uma contribuição decisiva à governança econômica global, criando uma nova camada de governança representada por instituições regionais”, afirmou.

Os BRICS desafiam a hegemonia do dólar

O professor chinês Gong Gang aprofundou o papel central que os BRICS podem desempenhar na construção de uma nova arquitetura financeira capaz de desafiar a hegemonia do dólar e liderar o processo de "desdolarização".

Ele fez uma crítica contundente ao sistema internacional atual, lembrando que “a arquitetura financeira internacional hoje é dominada por uma única moeda forte, o dólar, sem nenhum tipo de controle internacional sobre sua emissão.” Isso é ainda mais alarmante, acrescentou, considerando que “o dólar está nas mãos de um banco central privado.” Isso significa que “toda vez que se emite a base monetária do dólar, ativos privados são inflacionados.” Gong estima que “os ativos federais passaram de apenas US$ 1,4 bilhão em seus primórdios para US$ 6,7 trilhões atualmente.” Esses ativos privados são envoltos em sigilo, tornando incerto se podem ser usados em negócios privados, como garantia em empréstimos ou mesmo em transações comerciais.

O poder desenfreado do dólar torna difícil enfrentá-lo, mas Gong destacou que não é uma moeda invencível e que a economia dos EUA enfrenta várias contradições internas. Por exemplo, a própria força do dólar incentivou a migração da indústria para países com mão de obra mais barata — algo que Trump tenta reverter com tarifas agressivas.

Por outro lado, o domínio do dólar sobre a população mundial forçou países como Rússia, China, Irã, Venezuela, Cuba e Coreia do Norte — sancionados e, em alguns casos, excluídos do sistema financeiro global — a construírem arranjos alternativos de comércio, finanças e investimento.

Gong defende a criação de uma moeda unificada dos BRICS e de um sistema próprio de pagamentos e câmbio. Isso, no entanto, exigirá muito trabalho, confiança entre os países membros e fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), a partir da entrega de reservas cambiais nacionais e o uso da nova moeda dos BRICS no comércio internacional. Esse fundo daria ao NDB maior capacidade de intervenção nos mercados de câmbio.

O economista chinês alertou que ainda há hesitação em avançar com a moeda dos BRICS, dado que ela não foi mencionada na declaração final da última cúpula do bloco em Kazan. No entanto, observou que o processo segue em andamento e que os EUA já expressam preocupação com seu possível impacto. “A emergência dos BRICS é, evidentemente, um desafio direto e substancial à hegemonia do dólar. Por isso, enfrentará, com certeza, uma reação feroz dos Estados Unidos”, afirmou.

Um novo mundo nasce enquanto o império entra em declínio

Por fim, o ex-diretor do FMI e fundador do NDB, Paulo Nogueira Batista Jr., ressaltou a importância histórica dessas discussões. O crescente entusiasmo em torno de uma nova arquitetura financeira ocorre em um momento de profunda incerteza, quando os EUA, potência hegemônica global, enfrentam uma grave crise, acentuada pela ascensão do presidente bilionário e de extrema-direita, Donald Trump. Segundo ele, “Os EUA vivem um processo de decadência cultural, sociológica e política há décadas. Trump é apenas um sintoma agudo e mostrou que essa decadência era ainda mais grave do que se imaginava.”

A turbulência econômica e política das últimas semanas, marcada por ameaças de tarifas contra aliados históricos e parceiros comerciais estratégicos, agravou ainda mais a instabilidade global.

Batista Jr. declarou: “O FMI é um sistema desacreditado… a OMC praticamente já não existe. Não há mais confiança no dólar, especialmente depois das confiscos que ocorreram com a guerra na Ucrânia.”

Sua avaliação sobre o que virá após o declínio das instituições de Bretton Woods ecoou a de outros palestrantes, mas com um alerta: a transição será longa e difícil. “De onde virá essa nova arquitetura financeira? Da Rússia, da China e dos BRICS, com Rússia e China juntas.” Contudo, “o que os BRICS fizeram até agora foram apenas arranjos baseados em velhos bancos centrais e instituições que já estão falidas.” Ele enfatizou: “Uma nova arquitetura financeira não virá dos BRICS no curto prazo. A Rússia tem feito avanços, mas é a China que está silenciosamente mudando essa arquitetura.”

Apesar da lentidão do processo, Batista Jr. concluiu que “a desdolarização já está em curso. Sabemos que as transferências entre países já são feitas em moedas nacionais, como entre China e Rússia ou China e Índia. Mesmo a função de socorrer países não é mais do FMI — é o Banco da China que vem cumprindo esse papel, seja em yuan ou em dólar”. Isso, destacou ele, já representa um avanço importante.

O moderador do painel, o economista indiano Subin Dennis, lembrou que o desejo e a necessidade dos países do Sul Global de se libertarem do sistema financeiro dominado pelos EUA são históricos. E, embora ainda haja muito trabalho a fazer, essa possibilidade hoje parece mais próxima do que nunca.